Tenho cruzado com muitos discursos que dizem estar defendendo o Evangelho. Canais, cortes, pregações, vídeos virais — todos movidos por uma urgência: “é preciso proteger a fé”. Mas à medida que escuto, algo começa a ranger dentro de mim.
A retórica é de tribunal. O vocabulário, de trincheira. Palavras como “refutado”, “confrontado”, “desmascarado” não anunciam boas novas. Anunciam uma vitória. Mas uma vitória de quem sobre quem?
Fico pensando se o que estamos chamando de zelo, muitas vezes, não é apenas raiva com uma desculpa teológica. Se a tal “defesa da fé” não virou uma forma de encobrir um desejo de confronto, de exposição, de performance.
Porque a fé que me alcançou não chegou como espada. Ela veio como um convite. Não veio como combate. Veio como pão partido entre amigos, como gesto de reconciliação, como um olhar que chama pelo nome. Quando Jesus encontra os discípulos em dúvida, Ele não os desmascara. Ele parte o pão. Quando é confrontado por Pilatos, não levanta a voz. Quando é traído, não se defende — se entrega.
Então por que essa ânsia de vencer debates? Por que esse orgulho em “calar o outro”? Por que esse gosto por ver “minha doutrina” humilhar a do outro, como se o Evangelho fosse uma tese e não um encontro?
Fico pensando se não estamos errando o alvo justamente na metáfora que escolhemos para viver a fé. E metáforas não são inocentes. Elas moldam o nosso jeito de ver, de falar, de reagir, de crer. Quando vivo minha fé como uma batalha, preciso de inimigos. Quando vivo como caminho, preciso de companheiros. Quando a fé é guerra, o outro é ameaça. Quando é jardim, o outro é solo.
Pedro nos ensinou a estar sempre prontos para responder sobre a nossa esperança — mas com mansidão e respeito (1Pe 3.15). O curioso é que essa defesa que ele propõe começa com escuta, não com imposição. Com vida vivida, não com argumento decorado. Ele pressupõe que alguém vai perguntar, e que a pergunta virá não porque vencemos uma discussão, mas porque despertamos curiosidade com o modo como caminhamos.
Talvez o grande problema não esteja em “defender a fé”. Mas em como a defendemos. E mais profundamente: por qual metáfora temos vivido? A da guerra? A da mesa? A do campo? A do santuário? A da cruz?
É esse o ponto de partida da nossa conversa.
A metáfora que governa a fé
Metáfora não é só poesia. Não é só um jeito bonito de falar. A metáfora é uma lente. Um caminho mental. Uma estrutura invisível que molda como a gente percebe o mundo, age no mundo, e reage ao que o mundo nos apresenta.
A gente diz que a vida é uma estrada, e de repente começa a pensar em fases, em desvios, em placas de aviso. Diz que o coração é um campo de batalha, e sem perceber se vê tomando lados, levantando defesas, preparando ataques. A metáfora não descreve — ela direciona. E quando ela se torna dominante, ela governa.
George Lakoff e Mark Johnson, no clássico Metaphors We Live By, afirmam que a essência da metáfora está em “compreender e experimentar uma coisa em termos de outra”. Isso parece simples, mas tem implicações profundas. Porque se compreendo o amor como guerra — “ela me conquistou”, “ele me desarmou”, “nós estamos em crise” — então toda a lógica do conflito se instala ali onde deveria haver entrega. Se compreendo a discussão como combate — “destruir o argumento do outro”, “atacar a premissa”, “refutar com força” — já não há espaço para escuta. Só para sobrevivência.
Agora pense na fé.
Se a metáfora dominante que eu carrego é a da guerra, tudo se transforma em trincheira. O mundo é território hostil. O outro é oponente. A doutrina é uma arma. O púlpito vira palanque. E o meu papel como cristão é militar.
Mas e se a fé fosse pensada a partir de outra metáfora?
E se fosse uma mesa? Um campo fértil? Um rio? Um abraço?
E se em vez de me ver como guerreiro, eu me visse como pastor? Semeador? Cuidador? Curador? Anfitrião?
A questão não é apenas linguística — é existencial. Lakoff e Johnson são claros: “as metáforas não são apenas questões de linguagem; são estruturas fundamentais do pensamento humano.” Em outras palavras: a metáfora pela qual vivemos molda o tipo de cristão que nos tornamos.
Talvez seja por isso que Jesus ensinava com histórias e imagens: o grão de mostarda, o fermento na massa, o pastor que busca, o pai que espera, o semeador que lança. Metáforas que não gritam. Que não triunfam. Mas que transformam.
Talvez o Evangelho não precise ser defendido como uma doutrina em guerra, mas vivido como uma história que convida, acolhe e provoca conversão — não de ideias, mas de caminhos.
A mansidão como força espiritual
Dallas Willard escreveu que “a mansidão de Cristo era uma força serena, não fraqueza. Ele não gritava para ser ouvido. Sua vida era o argumento.” Essa frase poderia tranquilamente substituir grande parte dos nossos discursos apologéticos.
Willard nos convida a um tipo de defesa da fé que não se apoia na superioridade lógica nem na pressão emocional. Mas na coerência. No modo como o caráter se encarna no cotidiano. Na beleza discreta de quem vive o que crê. E crê sem precisar humilhar quem ainda não crê.
Ele chama isso de “apologética do caráter”. Uma ideia simples, mas radical. Porque ela exige mais do que argumentos bons: exige integridade. Exige formar-se por dentro antes de falar para fora. Exige que a gente viva de tal maneira que alguém pergunte, com genuína curiosidade: “de onde vem essa esperança?”
Esse é, aliás, exatamente o espírito do verso de Pedro — aquele que muitas vezes é citado para justificar confrontos duros em nome da fé. Mas que, lido por inteiro, diz o contrário:
“Antes, santifiquem Cristo como Senhor no coração, estando sempre preparados para responder a todo aquele que lhes pedir a razão da esperança que há em vocês. Mas façam isso com mansidão e respeito...” (1Pe 3.15)
Pedro não está chamando ninguém para o embate. Ele está chamando para a prontidão. Para uma prontidão que não nasce do instinto de ataque, mas da serenidade de quem vive tão diferente que acaba despertando perguntas. E quando as perguntas vêm, a resposta não vem como flecha — vem como cuidado. Como quem tem algo a dizer, mas não esquece que quem ouve também tem uma história.
Essa é a força da mansidão: ela não precisa vencer para ser verdadeira. Não precisa gritar para ser ouvida. Não precisa humilhar para ser clara.
Ela é a força de Jesus diante de Pilatos. A força do silêncio diante da acusação. A força do gesto que se ajoelha para lavar os pés, enquanto os outros ainda discutem sobre quem é o maior.
A mansidão, hoje, pode ser o mais profundo ato de contracultura. E talvez o mais necessário testemunho no meio de um mundo saturado de opinião e carente de beleza vivida.
O perigo de militar a fé como guerra
Toda metáfora tem um custo. Quando escolhemos uma imagem para guiar nossa fé, abrimos um caminho — mas também fechamos outros. A metáfora da guerra, por exemplo, tem sua força. Ela fala de vigilância, de resistência, de foco. Mas quando ela se torna absoluta, começa a deformar.
Quem vive a fé como guerra acaba precisando de inimigos. E se não há um herege por perto, qualquer discordância vira ameaça. Qualquer dúvida vira traição. Qualquer pergunta honesta vira sinal de fraqueza. A linguagem se enrijece. A comunidade vira tropa. O Evangelho vira trincheira.
George Lakoff observa que, quando organizamos uma experiência por uma metáfora — “a vida é uma batalha”, “o amor é uma guerra” — passamos a ver tudo sob a lógica daquele campo. Ganhar, perder, atacar, defender. E o que está fora dessa lógica é desprezado como ingenuidade ou fraqueza.
Mas e se for justamente o contrário?
E se for na fraqueza que o poder se aperfeiçoa?
Na escuta que a verdade floresce?
Na mansidão que a coragem se revela?
Jesus não militarizou o Reino. Ele não fundou uma milícia de fiéis. Ele acolheu pecadores, caminhou com os contraditórios, lavou os pés dos inseguros e dos traidores. E quando finalmente foi “confrontado”, calou-se. Quando foi “refutado”, entregou-se. Quando foi “vencido”, ressuscitou.
Há algo profundamente errado em uma espiritualidade que se orgulha de vencer debates, mas não sabe chorar com os que choram. Que defende a doutrina com fúria, mas falha em viver com compaixão. Que diz seguir um crucificado, mas se comporta como um conquistador.
Defender a fé não pode ser uma forma de fugir do discipulado.
Quando a fé vira militância, ela pode até mobilizar — mas não transforma. Ela pode até convencer — mas não converte. Ela pode até vencer no YouTube — mas não encarna o Reino.
Talvez seja hora de revisar a metáfora. Talvez o que o mundo esteja esperando da fé cristã não seja uma tese, mas um testemunho. Não uma espada, mas uma vida.
Por qual metáfora você vive?
A linguagem não é só o que usamos para dizer o que cremos. Ela é o lugar onde a fé nasce, respira, se move. Não existe Evangelho vivido sem palavras — mas também não há palavra que salve se ela não for habitada por uma vida.
Por isso, não é só uma questão de discurso. É uma questão de formação. De caminho. De imagem interior.
A pergunta que fica, depois de tudo, não é se devemos ou não defender a fé. É mais funda. É mais íntima. Mais perigosa também:
Por qual metáfora você vive?
Sua fé é uma espada ou uma ponte?
É uma fortaleza ou uma fogueira?
É uma guerra ou um jardim?
Você vive como quem está em combate ou como quem está a caminho? Como quem se arma para vencer ou como quem se despe para servir?
Porque a forma como falamos da fé não é neutra. Ela vai formando o tipo de crente que a gente se torna. E mais do que isso: vai moldando o tipo de Cristo que os outros verão em nós.
E se no fim, a pergunta de Pedro ainda ecoa — “esteja pronto para responder a todo aquele que lhe pedir a razão da esperança” — talvez a resposta não esteja nos lábios, mas no olhar. No jeito de tratar. No tempo de escutar. No modo de andar ao lado.
Que a nossa fé, então, seja defendida não com espadas, mas com frutos.
Não com certezas afiadas, mas com uma vida inteira.
Referências
JOHNSON, Mark; LAKOFF, George. Metaphors We Live By. Chicago: The University of Chicago Press, 2003.
WILLARD, Dallas. A gentileza que cativa: defendendo a fé como Jesus faria. São Paulo: Mundo Cristão, 2018.